21 outubro, 2008

Vale bem a pena ler

Publicado no Jornal de Negócios de hoje (21/10/2008) o articulista revela uma inegável lucidez sobre a realidade norte-americana. Talvez lhe falte um pouco mais de profundidade para abarcar o problema da decisão política (aqui Noam Chomsky revela-se imbatível, apesar de alguns já terem dado "novas do seu falecimento"). Mas, em termos culturais, Sachs coloca muito bem a questão! Mais, lança a bola para o campo educativo como responsável por este, digamos, "atraso cultural" norte-americano. Mas quem decide as políticas educativas? Precisamente os mesmos que sofrem deste deficit e detêem o poder!
A ler vivamente!

Jeffrey D. Sachs
A ameaça anti-intelectual americana
Nos últimos anos, os Estados Unidos contribuíram mais para a instabilidade mundial do que para a resolução dos problemas globais. Entre os vários exemplos contam-se a guerra no Iraque, lançada pelos EUA com base em falsas premissas, o obstrucionismo às tentativas de atenuação das alterações climáticas, uma ajuda ao desenvolvimento muito restrita e a violação de tratados internacionais, como as Convenções de Genebra.
Se bem que muitos factores tenham contribuído para as acções desestabilizadoras dos Estados Unidos, um dos principais é o anti-intelectualismo, recentemente ilustrado pela crescente popularidade de Sarah Palin, a candidata republicana à vice-presidência.
Por anti-intelectualismo entendo, particularmente, uma perspectiva anti-científica agressiva, sustentada por um desprezo perante quem adere à ciência e às suas provas. Os desafios com que se confrontam grandes nações, como os Estados Unidos, exigem uma análise rigorosa das informações, tendo como base os melhores princípios científicos.
As alterações climáticas, por exemplo, colocam terríveis ameaças ao planeta, devendo pois ser avaliadas de acordo com as normas científicas dominantes e com a capacidade evolutiva da climatologia. O processo científico mundial que dá pelo nome de Painel Inter-Governamental de Peritos sobre Alterações Climáticas (IPCC na sigla em inglês), e que foi vencedor de um Prémio Nobel, estabeleceu o critério do rigor científico para a análise das ameaças de alterações climáticas provocadas pela humanidade. Precisamos de políticos com conhecimentos científicos e adeptos do pensamento crítico baseado nas provas para traduzir estas descobertas e recomendações em programas de acção e acordos internacionais.
No entanto, nos Estados Unidos, as atitudes do presidente Bush, de republicanos influentes e agora de Sarah Palin, têm sido tudo menos científicas. A Casa Branca fez tudo o que podia durante oito anos para esconder o esmagador consenso científico de que os humanos estão a contribuir para as alterações climáticas. Tentou impedir que os cientistas do governo falassem honestamente ao público. Da mesma forma, o "The Wall Street Journal" propagou posições anti-científicas e pseudo-científicas de oposição às políticas destinadas a combater as alterações climáticas provocadas pelos seres humanos.Estas abordagens anti-científicas afectaram não só as políticas dirigidas ao clima, mas também a política externa. Os Estados Unidos lançaram a guerra contra o Iraque com base no instinto e nas convicções religiosas de Bush e não com base em provas rigorosas. Da mesma forma, Palin chamou à guerra no Iraque "uma tarefa atribuída por Deus".
Não se tratam de indivíduos isolados, ainda que poderosos, e desligados da realidade. Eles reflectem o facto de uma significativa percentagem da sociedade norte-americana, que vota recorrentemente nos republicanos, rejeitar ou simplesmente desconhecer provas científicas elementares em relação às alterações climáticas, à evolução biológica, à saúde humana e a outros domínios. Em geral, estes eleitores não rejeitam os benefícios das tecnologias resultantes da ciência moderna, mas rejeitam as provas e os conselhos dos cientistas em matéria de políticas públicas.
Os recentes dados de um inquérito levado a cabo pela Fundação Pew mostram que enquanto 58% dos democratas acredita que os seres humanos estão na origem do aquecimento global, apenas 28% dos republicanos pensa de igual modo. Da mesma forma, um inquérito realizado em 2005 revelou que 59% dos auto-proclamados republicanos conservadores rejeitava qualquer teoria da evolução, ao passo que 67% dos democratas liberais aceitava alguma versão da teoria evolucionista.Sem dúvida que alguns destes descrentes na teoria da evolução são simplesmente ignorantes em termos científicos, devendo-se isso à qualidade medíocre do ensino científico nos Estados Unidos. Mas outros são fundamentalistas bíblicos que rejeitam a ciência moderna porque estão convictos de que aquilo que a Bíblia diz é literalmente verdade. Rejeitam as provas geológicas das alterações climáticas porque rejeitam a própria ciência da geologia.
O problema que aqui está em causa não é o da religião versus ciência. Todas as grandes religiões têm tradições de intercâmbios frutuosos – e mesmo de apoio – com as investigações científicas. A Idade de Ouro do Islão, há mil anos, foi também a idade em que a ciência islâmica liderou o mundo. O Papa João Paulo II deu o seu apoio à ciência elementar da evolução e os bispos católicos romanos defendem acerrimamente a limitação do impacto do Homem sobre as alterações climáticas, com base em provas científicas. Vários cientistas eminentes, incluindo um dos maiores biólogos do mundo, E. O. Wilson, recorreram a comunidades religiosas para apoiarem o combate às alterações climáticas provocadas pelo Homem e para a protecção do ambiente e essas comunidades religiosas reagiram, por sua vez, em harmonia com a ciência.
O problema provém de um fundamentalismo agressivo que nega a ciência moderna e um anti-intelectualismo agressivo que vê os peritos e cientistas como os inimigos. São estes pontos de vista que poderão acabar por nos matar a todos. Afinal de contas, este tipo de extremismo pode levar mesmo a uma guerra, fundada na opinião perversa de que será uma guerra travada por vontade de Deus e não derivada do fracasso da política e da cooperação. Em muitas das suas declarações, Sarah Palin parece decidida a invocar Deus nos seus juízos acerca da guerra, o que constitui um sinistro presságio para o futuro no caso de ela ser eleita. Ela levará certamente muitos inimigos a recorrerem às suas próprias variedades de fundamentalismo para se vingarem dos Estados Unidos. Os extremistas de ambos os lados acabarão por pôr em risco a grande maioria dos humanos que não são extremistas nem fundamentalistas que se opõem à ciência. É difícil saber com precisão aquilo que está a provocar esta escalada do fundamentalismo em tantas regiões do mundo. Aquilo que está a acontecer nos EUA, por exemplo, não está a suceder na Europa, mas é naturalmente característico de algumas regiões do Médio Oriente e da Ásia Central.
O fundamentalismo parece emergir em épocas de importantes transformações, quando os tradicionais acordos sociais começam a ficar ameaçados.
A intensificação do fundamentalismo norte-americano moderno na política remonta à época dos direitos cívicos da década de 60 e reflecte, pelo menos parcialmente, uma reacção brutal dos brancos contra a força política e económica crescente dos não-brancos e das minorias imigrantes na sociedade norte-americana. A única esperança da humanidade é que o círculo vicioso do extremismo possa ser substituído por uma compreensão partilhada a nível global no que diz respeito aos elevados desafios em termos de alterações climáticas, fornecimento de alimentos, energia sustentável, escassez de água e pobreza. Processos científicos mundiais como o IPCC são muito importantes, porque constituem a nossa melhor esperança de conseguir alcançar um consenso com base em provas científicas.
Os Estados Unidos devem regressar ao consenso global, com base na ciência partilhada, em vez de se entrincheirarem no anti-intelectualismo. É esse o urgente desafio com que se confronta o coração da sociedade norte-americana de hoje.

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