31 março, 2008

A agenda oculta da educação (parte III)

Mas a construção não está ainda concluída. O ministério da Educação ainda tem muita pedra para partir até chegar ao destino. Daí que tenha urgência em proceder a inúmeras mudanças. É que “há outras gentes a obrigarem a tal ser­viço”. Vamos então por partes e um pouco sem respeitar a ordem cronológica das coisas, para que melhor se compreenda o caminho da carruagem.
Uma das intervenções do ME e deste governo para o fim último da agenda foi criar uma empresa – Empresa Parques Escolar (EPE) – (Decreto-Lei, nº41/2007 de 21 de Fevereiro). Para além de um vasto orçamento, património, autonomia financeira e administrativa foi-lhe passada a posse/encargo e tarefa de modernizar até 2015 o parque escolar de cento e muitas escolas secundá­rias (antigos liceus e escolas em zonas nobres do meio urbano). A empresa tem o poder de "deliberar sobre a aquisição, alienação ou oneração [aluguer] do seu património autónomo". Bom faz lembrar um pouco um processo seme­lhante que se passou com a municipalização (desclassificação) de estradas – melhoria das mesmas antes de as entregar aos municípios, ou mais recente­mente com a reorganização e saneamento financeiro das Estradas de Portugal (antiga JAE) para a já decidida privatização das ditas estradas. Quando chegar a altura e o porco estiver gordinho iremos certamente ver estas escolas à venda. (Repare-se que a EPE só intervém a nível das secundárias).
A preparação do espaço/património edificado ficará assim resolvida no que concerne ao secundário (eventualmente com o 3º ciclo agarrado em alguns casos para garantir clientela/rentabilidade). Quanto ao básico o destino tam­bém já foi traçado – a municipalização de todas as escolas para ficarem sob a alçada (teórica) das Câmaras Municipais. A chamada “devolução à comuni­dade” – como se pudesse devolver uma coisa que nunca foi de quem a vai receber (enfim, contas de outro rosário). E está já previsto para Setembro de 2008. Alguns municípios ainda lançaram a escada para que os professores ficassem também sob a sua alçada (Tavira, por exemplo) … mas desta vez, pelo menos e por enquanto, o ME teve juízo. Quanto tempo mais? Não se sabe, mas Setembro de 2009 ou 2010 também já não estão muito longe.
As câmaras municipais há muito que andam desejosas que tal aconteça. O motivo mais óbvio será a injecção de capital proveniente do ministério que será para aplicar nas escolas. Mas… é bem possível que outras razões existam…há escolas muito bem colocadas em território urbano…e quem sabe se não será possível embaratecer os custos recrutando outros professores? Ou contratuali­zar com empresas de formação? Ou ainda um pouco como aquilo que aconte­ceu com o recrutamento para as actividades de enriquecimento curricular do 1º ciclo! Tudo será possível. E bem sabemos como o poder autárquico é permeá­vel a influências…
Um outro aspecto que convém não descurar e que diz simultaneamente res­peito ao património edificado e ao controle de despesas/custos – o fecho de escolas. Este fecho, que maior celeuma e contestação poderia provocar (e levantou mas o controle de danos foi eficiente), iniciou-se rapidamente logo no princípio da legislatura, aproveitando um certo estado de graça do governo. Também dele emanam implicações economicistas: fecham-se escolas e luga­res de professores, reduzem-se as despesas com a sua manutenção e aliviam-se as câmaras municipais de alguns encargos. Em termos de futuro fica-se com um património mais concentrado, mais apetitoso para os privados, porque menos atomizado. A construção dos centros escolares para compensar o fecho das escolas segue o mesmo raciocínio – favorecer uma privatização ou semi-privatização.
Se a parte edificada fica assim resolvida há ainda outras tarefas a levar a cabo de forma a tornar atraente à cobiça capitalista aquele que se afigura como sendo um dos grandes negócios do século XXI: a privatização do ensino.
Uma das “grandes pedras angulares” do projecto, e que tem passado desper­cebida (ou pelo menos relegada para 2º plano) é a questão da gestão das escolas! O projecto de lei prevê coisas bastante gravosas para as escolas, para a democracia dentro das mesmas e escancara as portas à gestão privada. De que forma?
Com o fim obrigatório do órgão colegial de direcção (conselho executivo) e a sua eleição dentro da própria escola O que o ministério quer decretar é uma alteração mais profunda do que aquilo que parece fazer crer. A nova gestão não só terá na figura do director um órgão unipessoal como passará a ser escolhido por indivíduos exteriores à escola (o novo conselho geral – que substitui a assembleia de escola e é composto por mais de 60% de membros que não estão nem fazem parte da escola). É como se fosse uma assembleia geral de accionistas… Nela estão os interesses dos pais, da municipalidade, dos interesses económicos, os grupos culturais e ainda, em minoria professo­res, estudantes (eventualmente) e funcionários da escola.
Porquê esta pressa na alteração? Ah! Sim, as lideranças fortes!!! Mas, se a avaliação feita ao modelo vigente pelo 115-A/98 confirmou que 87% dos exe­cutivos demonstravam boa ou muito boa capacidade de liderança, porquê isto agora?
Vários motivos. Novamente uns mais claros que outros… O director, ao ser escolhido da forma como acima se referiu, vai executar as políticas que forem determinadas pela mesma assembleia-geral, supervisionada à distância pelo ministério. Mas o ministério não abdica de o controlar… daí a possibilidade de ser a qualquer momento demitido. O interessante está, no entanto, na possibi­lidade de ser alguém de fora da escola a assumir a chefia de uma escola; alguém que venha de outra escola pública…, ou de uma escola privada ou cooperativa…, ou mesmo de fora de tudo isto, bastando que seja profissionali­zado, tenha as habilitações exigidas pelo estatuto e tenha 5 anos de exercício de funções…. Até pode, no momento nem estar a leccionar…. Ora, isto não impede que uma empresa contrate um indivíduo nestas condições e avance… Com as escolas sob a alçada dos municípios abrangendo até ao 9º ano, torna-se um universo atraente para alguém investir neste sector. Só a título de curio­sidade há um município que já contratou com um consórcio de empresas a construção de 4 parques de estacionamento (a serem geridos por esse consór­cio), a construção de 13 novas escolas e a renovação de outras 13. O total do investimento é de 117 milhões de euros (aproximadamente), dos quais são 87 para os estacionamentos e os restantes para o parque escolar. Não acredito que o consórcio fique só com as receitas do estacionamento – demoraria décadas a recuperar o investimento; ainda para mais sabendo que a Câmara não vai investir 1 cêntimo que seja! (pelo menos assim o dizem).
Voltando à figura do director e à (forte) possibilidade de este ser exterior à escola torna-se mais evidente que a função dele será sobretudo administrativa, fazendo prevalecer os aspectos burocráticos sobre os pedagógicos. E isto vai tornar-se complicado. Esse mesmo director pode transformar a escola numa empresa com a nomeação de capatazes (coordenadores de departamento) a seu belo prazer. E o Conselho Pedagógico fica também por ele, obviamente controlado. Os professores serão meros operários.
Com a atribuição de autonomia financeira (progressiva ou não), o financia­mento dependente dos resultados dos alunos, elaborado “por cabeça” (alunos inscritos), com os interesses de autarquias à mistura e eventuais empresas também envolvidas vai surgir uma situação fazer uma grande omeleta com poucos ovos… E, mais uma vez, isso tem custos….O orçamento pode não dar para tudo…
Ainda mais; o director terá capacidade para distribuir o serviço lectivo e para renovar ou fazer cessar contratos! E aqui está um outro ponto que escapa a muita gente, fiada que está na ideia de serem quadro de escola ou de nomea­ção definitiva! Este estatuto/situação acabou de vez com a publicação da Lei nº 12-A/2008 de 27 de Fevereiro (Estabelece os regimes de vínculos, de carreira e de remunerações dos trabalhadores que exercem funções públicas). O artigo 88º, no nº 4 diz claramente o seguinte: “Os actuais trabalhadores nomeados definitivamente (…) transitam, sem outras formalidades, para a modalidade de contrato por tempo indeterminado.” Isto significa tão só que o contrato pode acabar já amanhã! É quase certo que o corpo especial da função pública que são os professores vão ser integrados na carreira de técnico superior (aliás, a definição dela encaixa perfeitamente na situação de professores, médicos, enfermeiros… - veja-se a referida legislação). Outro aspecto legislativo impor­tante é que se irá aplicar aos trabalhadores da função pública a legislação geral do trabalho, com todas as implicações que tal acarretará.
Assim, e para concluir esta parte, temos uma intervenção no sentido da privati­zação a dois níveis – do parque escolar e do edifício jurídico subjacente à escola. Da parte material creio ter ficado claro com o que se expões; da parte jurídica verifica-se uma aproximação à gestão privada (a futura legislação sobre gestão escolar, a desvinculação de toda a gente da função pública – despedimentos mais facilitados e aplicação da lei da mobilidade). Em termos legais ainda haverá alguma coisa a fazer mas tudo aponta para que antes do final desta legislatura o quadro esteja plenamente desenhado.
(continua – a seguir: o destino final)

3 comentários:

Anónimo disse...

"Porquê esta pressa na alteração?"

Não terá a ver com a aplicação da directiva "serviços"?

http://eur-lex.europa.eu/smartapi/cgi/sga_doc?smartapi!celexplus!prod!DocNumber&lg=pt&type_doc=Directive&an_doc=2006&nu_doc=123

"A presente directiva inscreve-se no quadro da "Estratégia de Lisboa" e propõe quatro objectivos principais, com vista à realização de um mercado interno dos serviços:

Facilitar a liberdade de estabelecimento e a liberdade de prestação de serviços na UE.
Reforçar os direitos dos destinatários dos serviços, enquanto utilizadores dos mesmos.
Promover a qualidade dos serviços.
Instaurar uma cooperação administrativa efectiva entre os Estados-Membros.
A presente directiva estabelece um quadro jurídico geral que favorece o exercício da liberdade de estabelecimento dos prestadores de serviços, bem como a livre circulação de serviços, garantindo simultaneamente um elevado nível de qualidade dos serviços."

http://ec.europa.eu/internal_market/top_layer/index_19_en.htm

"The central principles governing the internal market for services are set out in the EC Treaty. This ***guarantees to EU companies the freedom to establish themselves in other Member States, and the freedom to provide services on the territory of another EU Member State other than the one in which they are established***. The principles of freedom of establishment and free movement of services are two of the so-called "fundamental freedoms" which are central to the EU internal market.

O manual de execução:
http://ec.europa.eu/internal_market/services/docs/services-dir/guides/handbook_pt.pdf

"Consequentemente, os Estados-Membros terão de assegurar que as regras previstas na
Directiva «Serviços» são aplicáveis a um amplo leque de actividades, independentemente de
os serviços serem fornecidos às empresas ou aos consumidores. Sem pretender ser exaustivos,
podem referir-se os seguintes exemplos de serviços abrangidos pela directiva: as actividades
da maioria das profissões regulamentadas14 (como por exemplo consultores jurídicos ou
fiscais, arquitectos, engenheiros, contabilistas, inspectores), artesãos, serviços empresariais
(como por exemplo gestão e manutenção de escritórios, consultoria em gestão, organização de
eventos, recuperação de dívidas, publicidade e serviços de recrutamento), serviços de
distribuição (incluindo serviços de retalho e grossistas de bens e serviços), serviços no
domínio do turismo (serviços de agências de viagens), serviços de lazer (serviços prestados
por centros desportivos e parques de atracções), serviços de construção, serviços no domínio
da instalação e manutenção de equipamento, serviços informáticos (portais Web, actividades
de agências noticiosas, editores, a programação informática), serviços de alojamento e
alimentação (hotéis, restaurantes, serviços de abastecimento), serviços no domínio da
***educação e formação***, aluguer (incluindo o de automóveis) e serviços de locação, serviços
imobiliários, serviços de certificação e ensaio, serviços ao domicílio (serviços de limpeza,
amas particulares ou serviços de jardinagem), etc." (p. 11)

Anónimo disse...

O negócio das empresas-escola já está no mercado. Só faltam alguns "detalhes" legislativos para ser um sucesso. A ausência duma política cultural e educativa está à vista de todos. As machadadas na destruição da classe média aceleram-se, pondo em causa o futuro do projecto europeu e a liberdade de ensinar. No futuro vamos ver os programas curriculares serem decididos pelos grupos de cidadãos com interesses religiosos ou económicos ou outros, os quais vão ser a pedra no sapato do regime democrático. As portas da ditadura estão a abrir-se. Como há uns anos se dizia: de vitória em vitória até à derrota final.

Anónimo disse...

Falta uma coisa! Como prevenir uma revolta? É que as pessoas vão passar a ser escravos mal pagos! Agora já há alguns como os professores contratados por escolas/empresas particulares que no primeiro ciclo dão aulas de música e outras com um ordenado de miséria, sem ajudas de deslocação andando de escola em escola, recebendo só 45 minutos de trabalho por tempo de aulas. É um nojo apoiado pelo governo qual pai de bastardos. Será que não vai haver revolta e guerra?