01 março, 2008

Outros tempos, outra escola...

Tirei este texto do "Sorumbático". Não pedi autorização, já que o texto é bom e merece ser lido e divulgado. Os fins justificam os meios, quase apetece dizer! Os autores, esses, creio que não se zangarão.
Barroso, que não o Durão, leva-nos calmamente a um tempo onde todos os papéis estavam claramente definidos e mais "papéis" não eram necessários. Eram poucos os actores? Hoje são muitos?
Não importa! O que é verdadeiramente preciso é não confundir coisas simples como, por exemplo, o direito ao ensino com a obrigatoriedade do sucesso, e outras patetices de um eduquÊs requentado.
Mas Barroso escreve melhor que eu! E os comentários são mesmo bons! Parabéns a todos!


O acto tão belo de ensinar
Por Pedro Barroso

FUI, NUMA OUTRA ENCARNAÇÃO que recordo com um misto de saudade e enfado, professor durante mais de uma vintena de anos. De tal vivência sobra a memória de alunos que se fizeram homens, e que ainda hoje me abraçam no reencontro de um passado que foi comum, embora vivido de lados opostos da cátedra.
Juntando essa experiência com o tempo de aluno - desde os seis anos até ao mais alto grau de licenciatura que a possibilitou - contarei, por alto, mais de quarenta anos a lidar em escolas várias, como aluno e como mestre. Creio que é tempo de ter as experiências digeridas e as andanças suficientemente aprofundadas. Nunca pensei, contudo voltar a falar de ensino com a seriedade e a amargura que vos trago hoje.
Foi um tempo em que se aprendia quando era mester de aprender. Tinha de se decorar a tabuada e aprender a fazer contas, coisa que hoje foi substituída pelas máquinas portáteis de calcular. Tinham de aprender-se os rios e os seus afluentes da margem esquerda e direita, as vias rodoviárias e ferroviárias, a História de Portugal nos seus falsos heroísmos, é certo, mas com um detalhe que abrangia o Gonçalo Mendes da Maia, o Fuas Roupinho, a Deuladeu Martins, o alferes Duarte de Almeida, o Decepado, os reis e seus cognomes, o mapa cor-de-rosa, o Teorema de Pitágoras, a construção do octógono, o SO4H2, enfim.
Tinha de aprender-se a convulsiva Revolução francesa, a geografia do mundo, os cristais e minerais, as línguas em uso, o desenho geométrico ainda a tira-linhas, compasso e outras palamentas rústicas convertidas hoje em ridículos objectos de museu. Liam-se «Os Lusíadas» e a lírica Camoneana; e Gil Vicente, Garrett, Júlio Dinis, Camilo, Eça. Obrigatórios.
Respeitavam-se os professores. Havia faltas de castigo, faltas de material e até faltas por atraso. Uma crueldade, talvez. Mas havia. E no fim perdia-se um ano por chumbar no exame, por mau aproveitamento ou por excesso de faltas. Inapelável.
Ninguém batia num professor; nem aluno, nem pai exaltado. Os conflitos e problemas eram tratados com Directores de Turma; e no caso de serem mais complicados, passavam ao Director de Ciclo, ao Vice-Reitor ou em última análise ao Sr. Reitor, última instância de decisão, autoridade e suposta equidade.
Sentíamos um ambiente de normal deferência, provocada por uma educação, talvez, demasiado acrítica. Eram tempos que não importa defender, sabemos. Mas em que uns aprendiam, outros ensinavam, e o mérito aos melhores reflectia-se, quase sempre - passem algumas embirrações injustas ou simpatias casuais, que sempre as houve - na classificação correspondente ao seu saber.
E afinal, deveria ser, até, um tempo doce e cândido, esse de estudar. Um tempo que se relembra, um dia, com saudade. O primeiro zero no ditado. O primeiro desenho de uma elíptica. O primeiro texto em inglês que se traduziu. O primeiro compasso solfejado sem erro.
Do mesmo modo, já jovem adulto, julgando saber tudo, tenho também igual memória da primeira aula que dei, da reacção dos alunos, da relação discreta e casual mas respeitadora com os pais.
Ao longo da vida, tal como todos nós, coleccionei conhecimento. Mas os trunfos e dados principais, as bases fundamentais do aprender a aprender, esses foram-me dados pela Escola. Por todas as escolas, em todos os escalões e importâncias.
Conheci o outro lado do ensino, como vos disse, na pele de professor efectivo dos Liceus.
Ora bem. Davam-se aulas. Essencialmente isso. O tempo que nos davam em que aparentemente não estávamos a trabalhar, estaríamos em casa a estudar, a preparar aulas, a ver pontos, a aprendermos e relembrarmos muitas vezes a matéria que a nós mesmos nos andasse distante, para melhor a podermos dar no dia seguinte. Ou a descansar de uma das mais duras profissões do Mundo. Que também pertence.
Nas reuniões de notas discutiam-se critérios e aproveitamentos. Nos exames examinava-se o que realmente aquele aluno sabia ou não da disciplina em questão. Uma vez por período escolar acertava-se o passo na matéria, para que uns professores não andassem demasiado depressa e outros demasiado devagar. Mas a actividade essencial de uma escola era o ensino. A transmissão. A aprendizagem. Havia que ensinar. Havia que aprender.
Hoje, vejo os professores mais desiludidos que nunca com a sua profissão. Todas as interferências do tecido social, das associações de pais, dos eventuais mecenas e das superiores e enfadonhas tarefas administrativas impostas, imiscuíram-se no ambiente escolar, ocuparam o tempo do professor e diminuíram o seu prestígio e determinância no acto educativo.
As reuniões preparam-se com mais reuniões. O aumentado tempo de horário de permanência na escola não proporciona nem o auto-estudo, o descanso, a renovação, ou a auto-formação essencial.
Atafulhados em papéis para preencher, parece que os professores têm de justificar ao Mundo inteiro as suas análises, as suas classificações e metodologias. A legislação não pára de nos surpreender. Numa versão peregrina de alguma cabeça delirante, uma proposta houve, não sei se ainda vigente, em que a Escola poderia passar a ser dirigida por um representante dos Encarregados de Educação, ou empregados de Secretaria, ou, até, pelo representante eleito do Pessoal auxiliar.
Cabeça semelhante às que, nada mais tendo para fazer, elaboraram o novo tipo de conceitos e designações gramaticais, de memória ainda fresca no ridículo de todos nós. Tanta produção de legislação apenas tem trazido o caos, nunca a liquidez, nem a simplicidade dos factos – Uma Escola é um local de ensino, e pronto.
No outro dia, junto de um ex-aluno meu, há muito tempo já, hoje, ele próprio, professor, colhi o desabafo em relação à sua evolução técnica pessoal de que quando tinha tempo ainda não sabia, e que agora, que ia sabendo, não lhe era dado tempo para desenvolver essas aptidões.
Os programas indulgentes criam alunos ignobilmente inaptos, leia-se analfabetos. E o país, enganado, julga ter o nível educativo em alta. Aferido em que bitola de qualidade? Ao quilo?
Os alunos são, aliás, bombardeados com currículos demasiado carregados - feitos para deslumbrar a Europa, talvez - e desajustados, sombrios, feitos de matérias para esquecer. No fim, um dia, brindam a uma licenciatura sem futuro nem cabimento e infelizmente, quantas vezes, acabam engrossando a lista nacional do desemprego.
A Escola assim tornou-se um massacre para os professores. Uma amálgama de créditos, neo-hierarquias, deveres e secretariado forçado em que quase se parece esquecer o acto maior de ensinar.
Em vez de alma e alegria vejo raiva surda, revolta e perplexidade nas escolas de Portugal. Violência. Abuso. Cansaço. Impotência. Tempo perdido.
Não haverá mão que aja? Não haverá consciência que pare para pensar?

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