Não resisto a publicitar na íntegra um texto de João Paulo Guerra no Diário Económico de hoje (13-07-2007).
Ele aborda integralmente algumas questões significativas da sociedade portuguesa: o sobreendividamento das famílias portuguesas, o gosto pela ostentação e o luxo, uma clara imprevidência en relação ao futuro e um problema cada vez mais notório nesta mesma sociedade: a fome, encoberta ou não, que começa a dar sinais claros da sua existência.
O primeiro aspecto afigura-se dramático - segundo o Banco de Portugal o sobreendividamento vai continuar. Mesmo com os sérios avisos do FMI, nada trava esta ânsia desmedida pelo hiperconsumismo. Já estamos no ponto dos 120 por 100, o que quer dizer que as famílias mesmo que usassem todo o rendimento disponível ainda restariam 20% das dívidas por liquidar. São as prestações das casas, do carro, de equipamentos, de férias, de compras diversas pelo Natal, aniversários, telemóveis, brinquedos, etc..., cartões de crédito a granel, entre muitas outras dívidas. O rendimento das famílias já não chega. A própria DECO já o avisou e alertou para o crescente de casos de famílias insolventes.
Mas ninguém leva isto a sério. A sociedade e as pessoas que a compõem estão mais preocupadas com a satisfação das suas pretensas necessidades (que lhes são incutidas por uma publicidade agressiva, e aceites por um extraordinário deficit cultural que se agrava cada vez mais) que se revelam incapazes de decidir e/ou agir de forma racional/coerente.
A vaidade e a ostentação vai sair muito cara a quem a pratica. Para já é possível que os juros voltem a aumentar duas vezes mais (cerca de 0.5% no total) ainda no decurso deste ano - o que é um aumento de encargos muito significativo. Não será pois de estranhar que a fome ganha contornos mais importantes. É que as pessoas pensam que é mais importante manter o status; e para isso estão dispostas a tudo - mesmo passar fome! O que nos leva ao texto que falei no início:
Fome
Uma cidadã polaca a residir em Lisboa, entrevistada ontem por Adelino Gomes para o Público sobre a vida na capital e as eleições para a Câmara, manifestava o seu espanto pelo parque automóvel dos portugueses.
João Paulo Guerra
“Aonde é que os portugueses, com o que ganham, vão buscar dinheiro para comprar carros tão caros?”. Não sabemos se a senhora polaca lê português e se leu, pelo menos, a edição do Público de ontem, para entender ou para se pasmar um pouco mais sobre este país de mistérios como o da origem do dinheiro para carrões de luxo. É que se leu, poderá ter ficado a saber pelo relatório do Banco de Portugal que o endividamento dos portugueses vai continuar. Como poderá ter tomado conhecimento de uma realidade dolorosa que contrasta com o espalhafato do parque automóvel: há fome entre os pobres e a classe média no distrito de Beja.
E é assim este país campeão das desigualdades: esbanja dinheiro no crédito às aparências e simultaneamente passa fome. E é assim há muito tempo. É de uma trágica ironia que a fome em Portugal se possa, como pode, associar à democracia ou, pelo menos, às políticas de governos democraticamente constituídos: houve fome em Setúbal nos anos 80, há fome no Baixo Alentejo no século XXI. A maioria dos portugueses tem vivido em permanente sacrifício em nome de uma sempre adiada recuperação económica.
Pelo meio de muitos sacrifícios, e de alguma fome, um governo proclamou a descoberta do “oásis”, outro anunciou o “enterro” da “austeridade”. Mas hoje o empobrecimento de uma população já com dois milhões de pobres nas estatísticas avança à desfilada. O que não quer dizer que não haja dinheiro, ou crédito, para um parque automóvel de luxo. A cilindrada de uns é a fome de outros.
Sem comentários:
Enviar um comentário