03 fevereiro, 2008

Tristeza

Um belo texto de Maria João Teles. Leitura obrigatória para todos.
Tristeza
(...)
Por isso, fiquei muito surpreendida quando, esta manhã, acordei com uma vontade intensa de procurar o endereço do meu blog ( até me esqueço dele!) e desabafar.
Desabafar porque a tristeza que tem tomado conta de mim, nos últimos tempos, já não se contenta em ser verbalizada com alguns colegas de trabalho (poucos!) que, infelizmente, vão partilhando estes sentimentos de desalento e angústia.
Desabafar porque estou a sentir-me inútil, enxovalhada, descartável e uma peça partida de um jogo de xadrez qualquer, jogado por aprendizes dessa arte ancestral e que requer tanto inteligência como habilidade. Ou será que se tratam antes de foliões que, num pub rasca qualquer, vão atirando dardos a um alvo para passarem o tempo?
Desabafar porque, quando me perguntam qual é a minha profissão, eu já não sei se devo responder orgulhosamente "Sou professora!" ou, em vez disso, "Faço parte de uma companhia circense e, conforme o dia, vou sendo a mulher-palhaço, contorcionista, malabarista, domadora de feras...Olhem! Acumulo funções!"
Aproximam-se a passos largos os meus quarenta e três anos. Desde os seis que estou ligada ao ensino. Nunca cheguei a sair da escola. Fui aluna e depois professora. Comecei a leccionar ainda como estudante universitária e esta profissão faz parte de mim como a minha pele. No entanto, hoje sinto-me como uma cobra: com uma urgente necessidade de a mudar e arranjar uma nova.
Pela primeira vez, questiono a sabedoria da escolha que fiz relativamente à minha profissão. Escolha consciente, diga-se em abono da verdade...a culpa foi toda minha, ninguém me obrigou e pessoas avisadas bem me alertaram.
Mas, também existiam outras que pensavam de forma diferente.
Relembro nomes de antigos professores... daqueles que, por si só, já eram uma aula e não precisavam de recorrer a metodologias e estratégias inovadoras (já agora...se alguém souber de alguma que ainda não tenha sido tentada, não seja egoísta e partilhe-a comigo...eu já não consigo inventar mais!).
Recordo como esses professores me incentivaram a seguir esta carreira-"Foste feita para ensinar, miúda! Vai em frente!"- e como um deles, quando o encontrei já bem velhote, comentou com um sorriso "Eu bem sabia! Sempre lá esteve o bichinho!"
Que diriam, todos os meus professores que já partiram, sobre tanto decreto regulamentar que, em vagas sucessivas, vai transformando a nossa Escola e os seus professores num circo de muito má qualidade, cheio de artistas saturados, humilhados, mal pagos e fartos de trabalharem num trapézio sem rede?
Sou regulada por um Ministério que espera que eu seja animadora cultural, psicóloga, socióloga, burocrata, legisladora, boa samaritana, mãe substituta...
Espera-se que tenha doses industriais de paciência e boa vontade, que me permitam aguentar a falta de educação de meninos mal formados, de meninos dos papás, de meninos que estão na escola apenas porque não têm ainda idade para trabalhar (porque bom corpo isso têm!), de meninos que estão na escola a enganar os pais, que até se deixam enganar por conveniência, de meninos que frequentam os Cursos de Educação e Formação e os Profissionais porque acham que é uma forma de fazer turismo com os livros debaixo do braço (desculpem, enganei-me...vou rectificar- "sem os livros debaixo do braço"), de meninos que vêm para a escola para não deixarem que outros meninos, estes últimos sim, com aspirações e provas dadas, possam seguir em frente até serem os homens que os primeiros nem sequer conseguem projectar mentalmente...
Além disso, tenho reuniões: de departamento, de conselho de turma, de equipa pedagógica, de Assembleia de Escola (pois foi...também caí na patetice de aceitar presidir a este órgão...mais uma vez a culpa foi minha, pois pessoas avisadas bem me alertaram!), de grupos ad-hoc, de reuniões para decidir quando faremos mais reuniões...
Tenho legislação para ler. Labirintos de artigos em que o próprio Minotauro marraria vez após vez num ataque de fúria! Um dédalo legislativo, no qual nem Teseu conseguiria encontrar a ponta do fio.
Há papelada para preencher. Pautas dos profissionais, grelhas de observação para cada um dos alunos, registos das actividades de remediação...
Não esquecer a reposição de aulas. As dos alunos que faltam por doença, por namoro, por jogo dos matraquilhos...desde que a justificação do Encarregado de Educação seja aceite, lá tenho eu de arranjar actividades de remediação para quem não quer ser remediado!
Proibi a mim própria adoecer, visto que também tenho de repor essas aulas, mais as das greves, as das visitas de estudo dos alunos nas quais a minha disciplina não participa ( mesmo estando eu a cumprir o meu horário na escola...não faz mal, depois ofereço um bloco ou dois de noventa minutos gratuitamente!), as das minhas ausências em serviço oficial...
A questão é saber quando e como vou repor essas aulas, dado que o meu horário e o dos alunos é incompatível durante os períodos lectivos! Claro que isso não faz mal: dou dias das minhas férias! Afinal, não consta por aí que os professores estão sempre a descansar?
Tenho aulas para preparar. Testes e trabalhos para corrigir.
Devo investir na minha formação. Quando? Como? Onde?
E isto é a ponta de um rolo de lã que, bem aproveitadinho, dava uma camisola e pêras! Ou então uma camisa de onze varas!
Fazendo o ponto da situação, sobra-me pouco tempo para aquilo que gosto realmente: ensinar.
Pouco tempo para aquilo que me dá prazer: fazer circular o conhecimento.
Pouco tempo para conseguir que esse conhecimento ocupe o espaço que, na maioria dos casos, é ocupado por uma crassa ignorância.
Agora, dizem-me que vou ser avaliada ( tudo bem, não tenho nada contra o ser avaliada...talvez assim, com as novas emoções, eu descongele, pois há tanto tempo que estou no frigorífico laboral!), mas parece-me que vou voltar a uma espécie de estágio ainda pior do que aquele que enfrentei há dezassete anos atrás.
Tenho receio que as escolas se transformem num circo ainda maior.
Um circo de palhaços ricos e palhaços pobres.
Um circo de compadrios e vingançazinhas pessoais.
Um circo em que uma meia dúzia de artistas vai andar vestido de lantejoulas e seguido de cãezinhos amestrados, uma outra meia dúzia vai tornar-se perita na arte do contorcionismo, para evitar obstáculos, e a grande maioria da companhia vai ter de engolir fogo para o resto da vida profissional.
Ah! Não posso esquecer que, se tudo correr de feição a este Ministério da Deseducação, até o senhor Zé da padaria vai poder presidir a um órgão de gestão das escolas.
Esta não é a profissão para a qual eu me preparei anos a fio.
Por isso, estou triste.
Estou triste.
E não escrevi sobre tudo a que tinha direito.
E esta tristeza, para que eu a consiga despejar convenientemente, tem de ser escrita, gravada com letras...não me chega falar dela.
Até porque, ultimamente, também já não me apetece falar.

5 comentários:

António da Cunha Duarte Justo disse...

Colega:
Partilho consigo o que descreve. O que o ME agora faz com o professorado em geral exercitou-o já, e com bons resultados para a instituição a partir de 1997 no Ensino de Português no Estrangeiro.A sua política de ignorar tudo o que não pertença à sua nomenclatura, acompanhada dum comportamento autista perante os professores conduziu o professorado à resignação, aquilo com que contam agora para o professorado a leccionar em Portugal.
No meu blog, que pode consultar, encontram-se artigos saídos ultimamente em jornais sobre a actual problemática.
Atenciosamente
António da Cunha Duarte Justo

Leonor disse...

Revejo-me neste desabafo: Tb eu tenho 43 anos, ser prof. foi a minha primeira escolha, fui incentivada por alguns professores, outras pessoas disseram que eu era louca, senti-me sempre bem na minha profissão, adorava ensinar e agora ... todos os dias sonho em mudar de pele. Ainda bem que ainda há espaços para o desabafo ...

AC disse...

Efectivamente, ser professor nesta espécie de país, é um acto de heroísmo. A tristeza anunciada, não é particularmente sua. Somos uma nação de tristes, vilipendiados e ofendidos por meia dúzia de sacanas oportunistas que encontram na política o seu seguro vitalício.
Para mal dos nossos pecados, não temos cultura, educação ou inteligência, para exigirmos o respeito que nos é devido por esta cambada. Esta gentinha que compõe o actual governo – outro seria igual – encontrou nos funcionários públicos a razão de todos os males e este povinho pequenino e ridículo, vendo nesta rasca demagogia a vingança dos pequenos ódios que estimadamente guarda relativamente a estes seus iguais, aplaude e garante o voto.
Foi isto que conseguimos erguer. Quanto à escola, é obvio que estamos a criar milhares de pessoas profundamente ignorantes. Actualmente, nem é preciso ir às aulas para se obter diplomas. As consequências far-se-ão sentir a curto prazo.
Cpts

Anónimo disse...

Penso que não haverá professor neste país que não se reveja no retrato que a colega faz da nossa realidade escolar.
Também eu escolhi ser professora, conheci várias reformas, que nunca foram devidamente avaliadas.
Na vaga dos experimentalismos que nos caracteriza como povo, perdemo-nos nas periferias e agora todos nos debatemos em encontrar o centro da verdadeira identidade da Escola que, afinal, todos defendemos.
Ainda que entenda a analogia com o circo, num circo todos os intervenientes têm um papel para o qual se prepararam, e desempenham-no de acordo com o tipo de preparação que receberam e acabam por se tornar em exímios profissionais e artistas no seu ramo.
O professor foi preparado para ensinar, para educar.
E as nossas escolas foram felizes enquanto fomos professores/educadores.
O problema crucial do nosso sistema educativo hoje reside aí.
Querendo o M.E. o sucesso dos alunos, quer seja este propósito genuino ou não, ele esqueceu-se dos próprios alunos, curiosamente.
Transformando as escolas em empresas, o M.E esqueceu-se do verdadeiro capital a investir: as aprendizagens, os saberes, as competências, os afectos. Sim, esqueceu-se da vertente afectiva, relacional, humana.
Felizmente, seja com que modelo for de escola que se pretenda, esta vertente jamais se perde, enquando houver um professor e um aluno na sala de aula.
Afinal,(quem é professor sabe isso)o investimento, o único que vale a pena é o que se faz sobre o ser humano. E os lucros que auferimos, nós professores, não são as estatísticas, são os rostos vitoriosos de quem conseguiu vencer uma etapa, ainda que em termos de uma tabela (ela também falível, porque subjectiva)tenha ainda ficado aquém da classificação exigida para a chamada "aprovação".
Esses sucessos não se contabilizam pelas estatísticas oficiais, esses ficam apenas gravados na alma de quem, em conjunto, investiu o tempo, o conhecimento e o amor.
É verdade, esquece-se que educar é um acto de amor. Talvez por isso mesmo, a classe docente seja a que mais resiste às grelhas, às tabelas, à classificação, precisamente porque não se mede o amor, não se quantifica o amor, porque o amor não cabe na estrutura quadrada, redutora de reformas, por muito bem intencionadas que elas sejam.
Hoje também tal como a colega, também eu estou triste e também quero partir.
Mas, e se partirmos, nós que nascemos para educar, como vamos brindar ao verdadeiro sucesso dos nossos alunos, que é exactamente o de se terem cumprido como seres humanos, íntegros e sábios?

Anónimo disse...

Não conhecia este blog. Todo este texto chegou-me por mail e fiquei abismado como alguém conseguiu colocar em papel tudo aquilo que nós sentimos - Tristeza. Farei tudo o que estiver ao meu alcance para divulgar este blog pois os seus conteúdos devem ser lidos e, porque não, comentados.
Não pare nem se cale, pois se calhar é a próxima coisa que tentarão fazer...