04 maio, 2007

As fadigas dos deputados

Na edição on-line do Jornal de Negócios volta meia volta encontrados excelentes textos assinados por diversos autores, entre os quais Baptista Bastos. O tema desta vez explanado é sem dúvida interessante. E devia levar toda a gente a reflectir verdadeiramente sobre o sistema político português. Melhor, sobre a viabilidade deste sistema assente numa partidocracia que a ninguém representa a não ser um conjunto de interesses pessoais, obscuros e, na maior parte das vezes incompreensíveis ao comum cidadão. Este, de facto, não se sente representado. Depois constata o distanciamento entre as regalias daqueles que supostamente elege e o deveriam representar (ou representar a sua terra/região) e aquilo que recebe em troca. A democracia não está de facto a funcionar. Este sistema está montado não só para manter uma aparência de democracia e participação mas também um controle sobre o poder político de uma oligarquia fechada sobre si própria que com alguma regularidade pergunta ao povo se este quer que o continuem a oprimir.


Baptista Bastos
As fadigas dos deputados
b.bastos@netcabo.pt

Há um preconceito reverencial sobre o Parlamento, em matéria de crítica. Atacar a "nobre instituição" é ferir o "coração da democracia", diz quem julga saber. Mas não sabe, ou oculta o que pretende com esta sistemática recusa da crítica. O Parlamento não é intocável.
Se censuráveis podem ser Presidentes da República, presidentes da Assembleia, primeiros-ministros e ministros – porque razão obscura o Parlamento ficaria à margem da vistoria?
A confusão é favorável às emboscadas da malícia. Escudados na fortaleza de São Bento, os parlamentares misturam as conveniências pessoais com as nobres exigências do cargo para que foram eleitos. A baralhada começa aí. Quem os elege são os partidos, as máquinas partidárias, que beneficiam o servilismo, as bajulações, a obediência. Os recalcitrantes, os que levantam objecções aos dirigentes partidários são irremediavelmente trucidados.
Pessoalmente, não sei quem é o "meu" deputado, aquele que propugna pelos interesses do grupo social, profissional e ideológico a que pertenço. Não tenho ninguém a quem pedir contas. Não me reconheço em nenhum daqueles que dizem falar por mim – mas não falam. Os comentários tecidos em redor das actividades dos deputados são estarrecedores. O dr. Cavaco, depois do dr. Sampaio, proclama a urgência de se "dignificar" a política e o Parlamento. Nada se faz, se tem feito, para a moralização de uma actividade que devolve de si mesma a imagem da mais absoluta das inutilidades.
Os parlamentares demonstram uma ociosidade exasperante, são faltosos, falaciosos e fraudulentos: assinam o ponto e escapulam-se para os negócios privados, para os encontros que resultam em postos bem remunerados. Muitos deles servem-se da função para trocar favores, tratar da vidinha, organizar teias reticulares de amizades que, no futuro, irão beneficiá-los. Não digo nada de novo. Apenas torno público o que se sussurra.
O lugar de deputado é a base económica do apoio individual. A partir desse vencimento, parte-se para outras aventuras salvíficas da nação. Garante-se, primeira, uma reforma animosa. Há fortunas que se fizeram, fortunas imensas, obscenas, tendo como rampa de lançamento a Assembleia da República. Seria bom e extremamente útil saber-se das "aposentações" dos deputados, de todos eles, a fim de se separar o trigo do joio, desde a Constituinte até agora. Há criaturas que frequentaram o hemiciclo durante duas, três, quatro legislaturas sem jamais formularem uma ideia, apresentarem um protesto – sem nunca terem aberto a boca.
As fotos de Imprensa e as profusas imagens que as televisões nos dão constituem argumentos favoráveis à nossa repulsa. O "Tal & Qual" da semana anterior titula "Biscateiros da Nação" um texto no qual se diz que mais de uma centena de parlamentares "se desdobram entre a Assembleia da República e cargos, funções e actividades privadas". E adianta que Jorge Neto, aplicado militante do PSD, é "o campeão dos papa-empregos: tem 13".
Com a minha débil e rouca voz manifesto a Jorge Neto a minha mais rendida e comovida homenagem. As fadigas por que passa este português ilustre, "desdobrando-se", diligente e zeloso, entre a salvação da pátria e a direcção de empresas, companhias, por aí fora, impedem-no, certamente, de ter vida particular, de ler, ir ao teatro, ao cinema; de ouvir e ver, nas televisões, os altivos pronunciamentos do seu chefe, Marques Mendes. Almoça? Janta? Vai ao futebol? Chacina a massa cinzenta com minuciosas leituras de doutrinadores políticos? Delicia-se com os adoráveis textos de Rita Ferro? Prefere Saramago a Lobo Antunes? Que pensa de Marcelo Rebelo de Sousa? Atende às recomendações semanais do nunca assaz louvado António Vitorino?
Estas dramáticas interrogações assolam o espírito do mais vulgar dos mortais, tendo em conta a informação prestada pelo "Tal & Qual". Evidentemente, o caso de Jorge Neto não é único, mas parece-me exemplar. Ele costuma comentar, nas televisões onde a sua opinião é preciosamente escutada, as evanescências éticas de militantes e dirigentes de outros partidos; de criticar, com acerba inclemência, o desregramento do País, a ausência de competitividade dos trabalhadores, os prestígios da globalização como mecânica estruturadora do mundo do trabalho, a flexibilização?
Evidentemente, outros casos são referidos, ou aludidos, na peça publicada naquele semanário. O dr. Matos Correia, admirável presidente da Comissão de Ética da Assembleia da República, declara "que todas as actividades dos deputados são susceptíveis de gerar incompatibilidades ou impedimentos". A afirmação, por inócua e desviante, nada diz. Como inócua e confusa é a proposta do extraordinário socialista António José Seguro, ao que parece destinada a criar um documento moralizador da baderna que tem sido embalada na "nobre instituição". Seguro é procedente da Juventude Socialista, alfobre, como todos os agrupamentos juvenis de todos os partidos, de um grupo de ociosos, cuja "profissão" é a de "político". Há anos, o audaz Seguro "concedeu" uma grave entrevista ao pesado "Expresso", que serviu de devastadoras anedotas e de hilariantes comentários. Dizia ele estar "cansado da política" caseira, mas totalmente disponível a servir a pátria augusta nas canseiras do Parlamento Europeu. E para lá foi, coitado!
Não é por decreto que se estabelece a morigeração das almas nem o rigor das práticas institucionais. Repare-se nas comissões de inquérito, de ética, de isto e de aquilo que povoam São Bento. Servem para alguma coisa de concreto? Dizem que os vencimentos dos deputados são de molde a impedir que os melhores entre os melhores lá estejam. Mas, pergunta-se, e o tal espírito de missão, tão apregoado pelos partidos?
Em consciência, como se pode dar crédito a esta gente que tem desacreditado a acção, presumivelmente vigilante e redentora, do Parlamento? Obter um lugar de deputado é melhor do que ganhar o Euromilhões. Deste prémio toda a gente fica a saber. As pedinchas são inumeráveis. As tentações externas não param. Assim como assim, estar sentadinho nas bancas da Assembleia dá direito a muitas outras coisas, omissas e dadivosas. E também permite bater-se grandes sonecas.
Voltarei, certamente, ao assunto.

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